Olhos da Meia-Noite - Capítulo Sete

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Ricardo está sentado no balcão do bar, olhando para um copo de cerveja, quando Milena chega.

— Desculpe a demora, vim o mais depressa que pude. Estava num trabalho com minha mãe desde ontem e...

— Por acaso foi matar alguém?

— O que está dizendo?

Milena sentia o aroma de Ricardo. Estava visivelmente irritado.

— É o que você faz, não é?

— Eu não entendo!

Ricardo aponta para uma pequena televisão na parede. Milena vê um repórter falando, atrás de si o Corpo de Bombeiros e alguns curiosos.


“— Encontrado morto esta noite um rapaz ainda não identificado, sem documentos, com aparência jovem, mais ou menos 26 anos de idade. A causa da morte ainda não foi definida, mas há sinais de luta no corpo.”

Ricardo vira-se para Milena.

— Esse lugar fica perto daqui. Aquela mesma rua que você lutou com dois vampiros. É ali, não é? O lugar onde vocês caçam humanos! Foi você?

— Não! Ricardo, por favor, não fui eu! Eu sou contra esse tipo de coisa e...

— Acontece que mostraram o rosto do cara. É o Cachorrão, eu reconheci na hora. O cara que se bateu com você aqui dentro. A galera toda tá achando que foi você.

— Mas não fui eu! Olha, Ricardo, esta noite eu estava com minha mãe, devolvendo à sociedade os humanos que caçamos. Todos eles. Não ficamos com nenhum. Você sabe o que isso significa?

— Não.

— Significa que estamos sem nada. Que vamos morrer aos poucos. Mas não vamos mais matar nenhum humano. Não entende? Não fui eu quem matou Cachorrão, eu cheguei aqui atrasada por causa disso!

Ricardo olha para Milena em silêncio.

— Então quem foi? Foi algum de vocês, não é? Eu sei que foi.

— Alguns de nós, Ricardo, não compreendem o valor da vida humana. Alguns de nós foram arrancados de suas próprias vidas para morrerem eternamente aqui na Terra. Foram abandonados e vivem nas ruas pelas noites, como morcegos. Acham que isso é o suficiente para não quererem voltar a ser humanos e descontar tudo na raça humana, sugando o sangue de quem vier pela frente, sem escrúpulos, apenas para satisfazer um sentimento de ânsia, mais do que o da Fome. São esses, Ricardo, que constituem a maioria de nós, mas não são todos assim. Eu não sou assim.

Ricardo abraça Milena, enquanto na tela da TV, o repórter continua dando detalhes sobre a morte de Cachorrão:

— O corpo está praticamente intacto, apesar de sinais de luta. Não há indícios da causa de sua morte, apenas um osso quebrado devido a uma queda, que os bombeiros afirmam não ser tão grave.

Com aquele abraço, Milena percebia que eram dois mundos diferentes se abraçando. Como seria possível? Sabia que breve morreria, por isso decidiu viver intensamente cada minuto que lhe restava ao lado desse humano.


***


A fila em frente ao Cinema São Luiz dava voltas. Milena segura a mão de Ricardo e olha em volta, tantos humanos. Era a primeira vez que Milena ia ao cinema após seu abraço. Aquele dia tinha gente demais, e ela estava nervosa. Não sem razão. Há muito tempo não caçava humanos.

Os dois sentam-se diante da tela, ainda não começara o filme. Ela olha para os lados, visivelmente alterada.

— Tá acontecendo alguma coisa?

Até a voz de Ricardo parecia longe.

— Não! Por quê?

— Cê tá agitada!

— Impressão sua.

As luzes da sala vão se apagando lentamente. À medida que vai escurecendo, os olhos de Milena vão ficando mais brilhantes. Uma moça ruiva, sentada à frente dos dois, vira-se, dirigindo-se a Ricardo:

— Tu sabes até que horas vai essa sessão?

Os caninos de Milena crescem e, com um rugido, dá um salto caindo em cima da garota, mordendo-lhe o alvo pescoço. As pessoas em volta gritam e o cinema vira uma confusão.

— Milena, o que está fazendo?

Milena levanta o rosto sujo de sangue e contempla Ricardo.

— Milena, controle-se!

Sentada em sua poltrona, Milena repete as palavras:

“— Milena, controle-se, controle-se!”

Ricardo e a ruiva olham para Milena. A garota não compreende.

— Desculpe?

— Aconteceu alguma coisa, Milena?

Ricardo preocupa-se com ela. Talvez não devesse colocá-la entre tantas pessoas, seria um risco muito grande. Ela estava visivelmente perturbada. Ricardo teme que a garota tenha percebido algo, mas, ao olhá-la, vê em seus olhos apenas confusão.

— Não, não. Eu... eu vou ao banheiro. Com licença.

Milena se levanta e se retira, a ruiva a acompanha com o olhar.

Lava o rosto e contempla sua imagem no espelho. Precisava controlar-se. Havia tido uma alucinação provocada pela Shufi, mas, se não tivesse sido alucinação? E se fosse verdade? Tinha de se controlar! Precisava!

— Relaxe, relaxe!

Milena dá as costas para seu reflexo no espelho. Volta para a sala de cinema, estava perdendo muito do filme.

Ao sair do cinema, Milena se sente um pouco mais calma.

— E aí? Gostou do filme?

— Sim, muito. Agora vamos embora, que já vai amanhecer.

— Sim, claro. Mas... por que tanto medo do sol? O que acontece?

— Se um raio de sol me tocar, eu viro cinzas.

Milena continua caminhando, Ricardo seguindo-a. De repente, Milena pára de andar, olhos arregalados, mão no peito, respiração acelerada. Ricardo percebe a mudança.

— O que foi?

— Shhhhh!

Milena aguça todos os seus sentidos. Ouve a voz de Lady Anthonya.

— Milena! Minha filha!

Para seu desespero, também ouve a voz de Lázarus.

— Ela vai vir já, já! Ah ah ah!

Milena dá um rugido e seus caninos crescem.

— Mãe!

Milena corre, atravessa a avenida Conde da Boa Vista deserta. Ricardo também corre.

— Espera! Eu vou com você!

Milena pára em frente ao Edifício Pessoa de Melo, Ricardo pára logo atrás.

— É perigoso. Eles pegaram minha mãe.

— Vai ser perigoso é você me deixar aqui sozinho. Eu prefiro ir.

Milena reluta um pouco, antes de abraçá-lo e voar em direção ao topo do prédio. No topo, olha em volta e não vê ninguém, mas sente o cheiro dos Malkavianos.

— Onde ele está? Tá amanhecendo, preciso sumir logo!

Seguindo seus sentidos, Milena caminha em direção à caixa d’água do edifício. Se depara com sua senhora, presa, amarrada a ela.

— Mãe!

Milena corre para Lady Anthonya, Lázarus aparece, observando-a tentar arrancar as cordas que a prendem.

— Não vai adiantar. Eu fiz um feitiço que aprendi com uma Tremere poderosíssima. As cordas não vão desatar, a não ser por mim.

— Por que está fazendo isso? Ela não te fez nada!

— Mas você fez. E eu quero punir você assim. É muito mais divertido!

Milena desespera-se mais. Nunca pensou que pediria algo àquele Malkaviano.

— Por favor! O sol vai nascer! Desfaça o feitiço!

Lázarus nem pisca.

— Sinto muito, mas preciso ir. Como você mesmo disse, o sol vai nascer, e eu não quero estar aqui. Pena que não vou ver o que vai acontecer. Espero que você fique para ver. Vai ser melhor ainda. Se não, te encontro aqui à noite. Tchauzinho!

Lázarus corre e salta do Edifício. Milena vira-se e concentra suas atenções em Lady Anthonya.

— Mãe, tente se lembrar das palavras daquele Zían Malkavian!

— Não posso. Ele não usou palavras. Fez um feitiço diferente. Um feitiço poderoso que só pode ter aprendido com uma pessoa. Ele usou o próprio sangue! Não poderia ter acesso a nada, mas ele falou com alguém, alguém que deixou o cheiro nele, cheiro que nunca vou me esquecer.

— De quem desconfia, mãe?

— Tenho certeza. Marie Françoise Rosé, a Baronesa de Chatêau DuMont.

Milena compreende a gravidade da situação, mas não se dá por vencida. Concentra todas as suas forças nas cordas que prendem os braços delicados da Anciã de 820 anos, a Anciã dos Tremére em Recife.

— É... impossível!

Começa a clarear, e Lady Anthonya teme pela vida de Milena.

— Desista! Vá embora! O sol vai nascer!

— Não! Não sem você!

— Esqueça! Eu estava fraca mesmo, há tanto tempo sem sangue! Iria morrer!

— Mas ao menos alcançaria o Saraha. E agora? Vai ser exterminada!

Os caninos de Milena crescem e ela tenta rasgar as cordas com eles. Em vão. Ricardo percebe o que vai acontecer.

— Milena! O sol!

Milena continua curvada sobre o braço de Lady Anthonya.

— Me obedeça! Saia daqui! Já!

Lady Anthonya não podia permitir que Milena se arriscasse assim por ela. Estava tudo acabado. Pelo menos ela deveria lutar pelo Paraíso. Mas ela continua curvada, concentrada em seu trabalho. Com uma ferida em seu braço, sai um filete de fumaça. Ricardo percebe.

— Milena! Seu braço!

Lady Anthonya apela para o garoto.

— Leve-a daqui!

O rosto de Lady Anthonya LeBeau começa a desfigurar, queimando ao sol. Ricardo agarra Milena, tirando-a à força de cima das cordas.

— Não! Mãe!

Ricardo arrasta Milena contra a vontade para a entrada da clarabóia. Os braços de Lady Anthonya ficam acinzentados, saindo fumaça. Seus olhos voltam-se para Milena, na sombra.

— Adeus, minha filha.

— Por favor, não me deixe, mamãe!

Ricardo entra com Milena no edifício. O corpo de Lady Anthonya vira pó, que o vento começa a levar. Seus braços destroçam no chão.

No interior do edifício, Milena arromba uma porta com placa de “Aluga-se” e entra com Ricardo.

— Preciso dormir! Preciso de escuridão!

O quarto está claro, a luz do sol penetrando radiante pelas janelas. Milena se arrisca novamente, se aproximando das janelas. Fura a palma da mão esquerda com a unha do polegar direito, derramando seu sangue nas janelas.

— Cocar Ocará, Paranã-Pukana. Cocar Ocará, Paranã-Pukana.

De repente, a entrada de luz é neutralizada e a sala fica completamente às escuras. Ricardo observa a tudo atônito. Do lado de fora, as duas janelas refletem totalmente a luz do sol, como dois espelhos. Dentro da sala, Milena fecha a porta e se deita no chão limpo. Ricardo deita-se ao seu lado e observa Milena fechar os olhos e cruzar as mãos no peito. Ricardo toca seu pescoço.

— Meu Deus! Ela não tem pulsação!

Milena, bastante pálida, apaga para o mundo dos vivos. Fora um passeio e tanto, aquela noite havia sido bastante comprida e Ricardo também precisava descansar.


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