Olhos da Meia-Noite - Capítulo Três

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Milena desce à sala num salto. Até que estava achando bom ser um vampiro, tinha lá o seu lado prático. O único problema seria a eternidade. Mas, não pensaria nisso agora. Teria toda uma eternidade para pensar.

Ao sentir seu cheiro, Lady Anthonya vai ao encontro de Milena.

— Embairah khufu!

— Obrigada!

Lady Anthonya olha para Milena, que pára perplexa.

— Espera... o que você disse?


— Exatamente o que você ouviu. Vôo perfeito.

— E... eu agradeci... eu entendi perfeitamente o que disse... mas não sei...

Lady Anthonya se aproxima de Milena.

— Este é o Holf Toschia, nosso Dialeto Vampírico. Você o compreende por instinto, mas precisa aprender a falá-lo. Enquanto isso, dou-te algumas lições. Me acompanhe.

Lady Anthonya começa a caminhar, em direção ao pé da escada, onde há uma pequena porta. Lady Anthonya faz um corte na palma da mão.

— Pret Blant Ocará, Paranã-Pukana.

Sangue escorre da mão de Lady Anthonya, e pinga na porta.

— Pret Blant Ocará Paranã-Pukana.

Lady Anthonya diz as palavras com concentração. Milena ouve com atenção e compreende o significado delas, como que por encanto. Estava em seu ser aquele dialeto. Pareciam palavras de feitiço... deveriam ser, pois, como Lady Anthonya a havia dito, eram bruxas. O significado delas passeava em sua mente enquanto assistia a porta se abrir devagar. “Porta selada neutralizada, eu ordeno.” Com certeza, eram palavras para neutralizarem o feitiço. Aquela porta jamais seria aberta, não fossem tais palavras e o sangue de Lady Anthonya.

— Vamos.

Lady Anthonya passou pela porta abaixada, e Milena a seguiu. Do outro lado, a escuridão imperava, uma escada íngreme levava ao desconhecido. A porta foi fechada novamente, desta vez, Lady Anthonya instruiu Milena a fazê-lo, que se saiu muito bem. A porta se fechou, devagar, ante as palavras e o sangue de Milena:

— Pret Blant, Paranã-Pukana. Pret Blant, Paranã-Pukana.

Seguiram pela escada abaixo, até um porão escuro, com muitas prateleiras, diversos frascos de vidro com muitas substâncias diferentes, as quais Milena reconhecia individualmente pelo cheiro. Caminharam ainda um pouco até uma outra sala, onde havia mais livros, mais prateleiras, mais frascos, mais substâncias. No centro da sala, uma vitrine, com um livro aberto protegido. A vitrine possuía uma marca, um símbolo que lembrava um círculo feito com caveiras e uma caveira no centro, gravado no vidro.

— Este é o Livro de Nod, o mais antigo livro para nós, vampiros. A explicação de tudo, a vida dos vampiros, o gênese de Caim, a primeira cidade, os Antediluvianos, a Jyhad e a Gehena, tudo aqui, há milênios! Nosso livro sagrado!

Milena acaricia o tampo de vidro que protege o Livro de Nod. Sentiu uma vontade imensa de lê-lo.

— Este é um dos Livros mais procurados. Ele foi separado em várias partes, espalhadas em todo o mundo. Nunca conseguiram encontrá-lo completo, somente alguns trechos foram descobertos. Os Tremere do mundo inteiro procuram sem parar, usando magia e feitiços específicos. Mas é muito difícil. Ainda estamos numa busca imensa, a qual você também vai participar. Mas a Jyhad nos atrapalha muito.

— Jyhad?

— Uma guerra que dura milênios. Uma guerra entre os anciões dos clãs.

— E por que há essa guerra?

Lady Anthonya pára um instante.

— Quando os antediluvianos se viram sem Caim, e formaram suas próprias gerações, uma guerra se iniciou entre esses clãs. Uma guerra, na verdade, entre os anciões. Esta guerra era por território, por rebanho, por sangue... são tantas as razões! Tudo isso remete poder ao ancião. Ele guerreia por poder. Muitos vampiros se espalharam pelo mundo, fugindo da Jyhad, e acreditam que a Jyhad não exista mais. Mas todos são meros peões nesta guerra de anciões.

— Estes antigos vampiros, terceira, quarta geração, ainda estão vivos?

— Não se sabe ao certo. Milhares foram mortos em seu enfraquecimento, pela quarta geração, que se viu livre para criar mais de sua própria especie. Quando a família ficava muito numerosa, havia mais guerra, e muitos morriam a Morte Final. Os anciões sabem se proteger, são muito mais inteligentes, têm cautela. Nesse período, fomos forçados a nos escondermos uns dos outros, e também dos humanos, por causa da Jyhad. Então, somos forçados a não deixar que os humanos saibam sobre nós.

Lady Anthonya vai à uma estante com alguns livros e tira de lá um livro antigo, de capa preta. Volta-se para Milena e estende as mãos. O livro flutua no ar, até chegar às mãos de Milena.

— Thus lofta Ahura Kad. Ante ahia luv Nod Kad. - Aqui está o Livro de Feitiços. Fala sobre o Livro de Nod. -

— Sáin.

— Kad lofta rhafi von Holf Toschia. Thus lofta sao von ante. - Este livro pode te ajudar com o Dialeto Vampírico. -

Milena alisa a capa preta do Livro de Feitiços e o segura contra o peito. Seria um longo trajeto a percorrer. Lady Anthonya sabia, mas estava ali para isso. Milena seria sua sucessora, uma influência na Primigênie. Uma grande influência no Dark World.


***

A noite estava apenas começando, e Milena queria aproveitá-la. Lady Anthonya não era a favor, afinal, Milena era apenas uma Criança da Noite, sob sua tutela. E o que mais a amedrontava era a Jyhad.

— Não creio que seja a hora de sair...

— Não precisa preocupar-se comigo, senhora. Eu sei o que não devo fazer.

— Milena, quero que saiba que no mundo aí fora não existem bonzinhos. Você encontrará outros clãs, que adoram brigar. Cuidado.

— Eu sei. Tomarei cuidado.

— Bem, você faz parte de sétima geração de vampiros. É bastante forte, mas ainda é uma Criança da Noite.

— Sétima geração de vampiros?

— Sim. A partir dos Antediluvianos, contamos as gerações. Eu fui abraçada por um Tremére da quinta geração, portanto, sou da sexta, e você, da sétima geração. Isso nos faz mais fortes, pois, quanto maior a geração, menos pontos de sangue temos, mais fracos somos. Você pode encontrar algum vampiro mais fraco, apenas por ser de uma geração mais avançada que a sua. Mas, se ele for bem treinado, poderás sair perdendo.

— Não se preocupe. Tomarei cuidado.

Milena sai da sala num vôo pela janela. Lady Anthonya a observa sair, e fica parada, no centro da sala, com os olhos fechados, até não sentir mais o cheiro de sua aprendiz.

Milena passa por lugares que antes costumava freqüentar, e se lembra de seu antigo namorado. Não sabia o que havia acontecido, mas era melhor que não o visse mais. Ele não iria gostar de vê-la. Apesar de não estar mau, muito pelo contrário, achava que estava até mais bonita, mais sensual... mas era melhor não vê-lo mais.

Resolveu entrar num bar. Estava cheio e, àquela hora da noite, somente gente barra pesada. Mas Milena não se importava mais com isso. Agora, podia defender-se sozinha, pelo menos, tinha certeza que para derrubá-la teriam que suar muito.

Ao entrar, todos olharam para ela. Esguia, Milena não titubeou e continuou andando até o balcão. Sentou-se num banco e esperou o barman se aproximar.

— Vodka pura com gelo.

— Pode deixar.

Milena nunca tinha tomado bebida forte, mas aquela noite teve vontade. Apesar de nem conseguir tocar no copo. O gosto não era dos melhores, parece que tudo perdia o gosto e o tempero depois que se tornou um vampiro.

— Até que enfim uma carne nova no pedaço.

Milena ouviu a voz de trovão no meio do bar, mas nem piscou. Continuou olhando para seu copo. Algumas pessoas no bar riram. Cachorrão se aproxima de Milena.

— E que curvas dessa gata!

Milena gira no banco e se depara com um troglodita, com cabelos compridos emaranhados, braços musculosos expostos, mostrando tatuagens de diversos dragões, suas pernas metidas num jeans rasgado, e com a sola da bota amassava um cigarro no chão. Em sua orelha, brilhava um piercing. Ela apenas encara-o, deixando-o nervoso. Dava para sentir o cheiro.

— Adoro quando uma garota me olha assim! Fico louco!

As pessoas riem. Milena não se move. Cachorrão continua provocando.

— Linda! E que pele! Tô louco prá mergulhar nessa pele, e sentir o cheiro dela!

— Cachorrão, já chega!

A voz vem do fundo do bar, para onde todos olham, com exceção de Milena e Cachorrão, que continuam se encarando. Ricardo se levanta de sua mesa ao fundo e se aproxima dos dois.

— Eu decido quando já chega.

Cachorrão segura bruscamente os cabelos de Milena, aproximando seu rosto do rosto dela.

— Pare com isso, deixe a garota!

Mas Cachorrão não se importa com os apelos de Ricardo. E nem era preciso. Milena dá uma joelhada entre as pernas de Cachorrão, que se afasta gemendo

— Sua vadia desgraçada!

Milena se levanta e fica de pé na frente dele, que tira da cintura uma adaga.

— Você agora vai ver só uma coisa, vagabunda!

Milena dá um salto e fica de pé no balcão.

— Como ela fez isso?

Ricardo pensava que Milena precisava de ajuda, mas estava enganado. Milena dá um chute na mão de Cachorrão, atirando a adaga longe. Salta e se segura em uns ferros no teto do bar, batendo com os dois pés no peito de Cachorrão, que com o impulso cai longe, derrubando umas mesas. Milena estende a mão para Ricardo.

— Vem.

Ricardo segura a mão de Milena e no segundo seguinte se vê ao seu lado, em cima do balcão. A essas alturas, todo o bar está em polvorosa, todos brigando entre si.

— Vamos sair daqui.

Milena corre por cima do balcão seguida por Ricardo, até saltar à porta do bar. Deitado no chão, Cachorrão vê os dois saírem.

— Vadia... você me paga!

Fora do bar, Milena e Ricardo caminham em silêncio. Chegam à mesma rua escura, onde Milena passou pela morte. As lembranças daquela noite estão vivas dentro dela, até parece sentir a dor novamente. Toda essa concentração foi quebrada pela voz de Ricardo.

— Eu não sei o seu nome.

— Milena. E o seu?

— Ricardo.

— Obrigada, Ricardo. Você foi muito legal me defendendo lá no bar.

— Apesar de você não precisar?

Milena e Ricardo sorriem.

— Como você fez aquilo?

— Aquilo o quê?

— Aquele salto, cair de pé no balcão, caramba! Foi demais!

— Digamos que... eu tenha boa impulsão!

Milena pára de caminhar.

— Bota impulsão nisso!

— Shhhhhh!

Milena pede silêncio.

— Aconteceu alguma coisa?

Milena tapa a boca de Ricardo com uma das mãos, e se encosta na parede de um casarão, segurando Ricardo contra seu corpo. Sem luar, a noite estava incrivelmente escura. O cheiro de vampiro estava impregnado no ar. De acordo com a coleção de essências de sua senhora, podia reconhecer o clã Malkavian. Seria perigoso estar ali, ainda mais com um humano por perto. Podia ouvi-los conversar, eram dois.

“— Cara, a Fome tá pegando!”

“— Fala não, Lázarus. E o pior, é que eu tô sentindo cheiro de caça.”

Milena focaliza os olhos para o fim da rua. Vê os dois Malkavian caminhando.

“— Mas tem um vampiro com ela. Só que não tá comendo!”

“— Vamos lá, quem sabe ele divide com a gente!”

Os dois Malkavian começam a correr e Milena se desespera. Milena se abraça com Ricardo e os dois voam para o telhado do velho sobrado. Mal tocam os pés nas antigas telhas, os dois Malkavian chegam.

— Ora, ora, ora. O que temos aqui!

Ricardo não entende absolutamente nada. Olha para Milena, mas ela se coloca em sua frente, de costas para ele, olhando nos olhos de Lázarus.

— Uma Tremére. Posso sentir o cheiro no ar. Que tal... dividirmos a caça?

— Ele não é caça... e não se aproximem!

— Uhuuuuuu! E é brabinha! Melhor ainda.

Milena solta Ricardo, mas fica em sua frente.

— Se você não vai dividir, a gente vai aí pegar.

Lázarus salta para cima de Milena, que faz o mesmo. No ar, Milena arranha o braço de Lázarus, arrancando a manga de sua camisa.

— Vadia!

Milena rapidamente fica entre Ricardo e Lázarus, cujo braço se regenera rapidamente.

— Não queira saber o que aconteceu ao último que me chamou de vadia.

Lázarus salta para Milena, que, abraçando Ricardo, rola no chão, passando para o outro lado. O outro vampiro Malkavian, apenas observa. Lázarus bate nele.

— Idiota! Faça alguma coisa!

O Malkavian se aproxima de Milena, que se transforma, seus caninos crescem e ela dá um rugido, como de leão, e ele volta para o lado de Lázarus.

— De jeito nenhum. Ela é muito forte!

— Tenha certeza disso!

Lázarus salta novamente e Milena estende a mão direita, mantendo Lázarus no ar.

— Tremére duma figa! Me ponha no chão!

— Saia de perto de mim e desse humano! Ou vai se arrepender! Saiba que sou mais forte que você e seu clã!

— Como pode ter tanta certeza?

— Sou da sétima geração.

O rosto de Lázarus mudou. Pelo visto, o plano de Milena teria dado certo. Apelou para sua geração. Não tinha certeza da geração de Lázarus, mas, ao cortá-lo no braço, sentiu seu sangue um pouco mais fino; não tinha certeza, mas ele podia ser de uma geração avançada, apesar de bem treinado. Como imaginou, ele não sabia que era apenas uma Criança da Noite.

— Ponha-me no chão!

Milena abaixa a mão suavemente, Lázarus aterriza do mesmo modo.

— Vamos embora. Mas saiba que isso não vai ficar assim!

Milena vê os dois Malkavian descerem do telhado devagar e fica alerta, até sentir seu cheiro longe. Retraindo seus caninos, volta-se para Ricardo, assustado.

— O... o... que aconteceu? Eu....

— Você precisa descansar.

Milena toca a testa de Ricardo, descendo os dedos até a ponta do nariz. Seu corpo amolece e ele desmaia nos braços de Milena. Ela procura em seus bolsos sua carteira e não encontra um endereço. Erguendo-o nos braços, segue seus instintos; procura na noite o cheiro do rapaz e segue-o, até achar seu lar. Um apartamento com varanda, ela o deixa descansar e procura uma janela aberta. Abre a porta por dentro e o leva para sua cama. Deitando-o lá, fica parada, observando-o dormir. Em seu pescoço, uma veia pulsa, mexendo com os instintos animais de Milena, que fecha os olhos e sai pela janela, voando para a noite.


Voltar para o Capítulo Dois        -          Continua...

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